Como todas as manhãs minha mãe preparava o café enquanto meu pai colocava os pratos sobre a mesa:
- Pegue os
talheres para mim querida - Disse ele calmamente. Enquanto fazia o que ele
pedira Anneliese aparece na cozinha com o rosto amassado por ter acabado de
acordar:
- Nossa nunca
vi gostar tanto de dormir - Eu brinquei.
- Nossa como
gosta de me criticar- Ela falou entre risadas.
- Mas é
claro. Como irmã mais velha é meu dever te irritar - Anneliese é um ano mais
nova que eu, mas apesar da proximidade de idade somos totalmente diferentes.
Ela tem cabelos castanhos escuro que batem na altura do ombro, olhos verdes e é
muito alta para sua idade. Já eu sou magra e de estatura media, nem muito alta,
nem muito baixa, tenho cabelo preto e comprido ate a cintura, liso na raiz e
ondulado nas pontas e o que mais gosto em mim são meus olhos azuis cor do mar,
não me acho muito bonita, meus pais dizem que sou linda, mas dizem que não se
deve confiar na opinião dos pais em relação a aparência dos filhos. Acho
Anneliese mil vezes mais bonita que eu.
- Meninas por
favor, parem com a brincadeira e venham tomar café, vocês tem muito trabalho a
fazer e se ficarem de risadinhas a manhã toda vão acabar levando bronca do
supervisor - Meu pai diz com um ar de preocupação.
A 5 anos
atrás os Estados Unidos declarou guerra
a Mersóvia, pais onde vivo, após anos de conflito o exército Mersóvio foi
bombardeado e sem dinheiro, força militar
e derrotados fomos obrigados a assinar um tratado que nos tornou colônia dos
EUA. Assim Arthur Filds foi escolhido nosso presidente permanente, e junto com
sua esposa Vivian Filds e seu filho Andrew Filds, que meses depois voltou para
seu pais, iniciou um governo corrupto e abusivo. Somos obrigados a trabalhar
como escravos e em troca não recebemos nem se quer um único centavo, todo o
dinheiro é enviado à metrópole que como pagamento por nossos serviços nos manda
apenas alimentos e roupas. Meu pai trabalha na produção de cimento e minha mãe
na produção de tecidos, Anneliese trabalha na criação de galinhas e eu sou
responsável pelas plantações. Em cada setor trabalhista há um supervisor e caso
desrespeitarmos alguma regra ou não efetuarmos nosso trabalho com qualidade
somos vítimas de punições. Eu e minha família somos contra o governo de Arthur
e ao fato de sermos colônias, e por isso participamos de um grupo Opositor
anônimo, e a grande preocupação de meu pai é a possibilidade do grupo ser
descoberto pelos governantes que no mínimo matariam todos os integrantes.
Tomo café
dou um beijo em meus pais, um tapinha na cabeça de Anneliese e vou trabalhar.
Quando chego na plantação Julian já esta lá.
Ele é líder do grupo rebelde e meu melhor amigo, certa vez Anneliese me disse
que ele gosta de mim não apenas como amiga, mas eu acho que ela só esta
fantasiando, quando a amizade é muito grande as pessoas começam a inventar
coisa onde não tem.
- Amélinha,
tudo bem - Ele disse logo depois de abrir um sorriso gigante.
- Você sabe
que eu odeio que me chama assim, você é a pessoa mais irritante desse mundo - De
fato, ser chamada por esse apelido ridículo me tira do sério.
- Me critique
a vontade, sei que você não aguentaria viver um dia sem mim.
- Você é um
convencido, isso sim!
- Convencido
não, realista.
- Parem de
conversa e comecem a trabalhar - gritou o soldado Pey. Ele é o supervisor das
plantações - hoje o dia tem que ser produtivo.
- Sim senhor! – Julian diz alto.
Depois de um
dia inteiro de trabalho e esforço estava cansada, sentia dor nos meus braços de
tanto pegar a terra com a pá. Julian falou enquanto caminhávamos:
- Posso te
deixar em casa?
- Você mora
na direção oposta da minha, não precisa não Ju.
- Preciso
sim. Faço questão de te acompanhar e não aceito um não como resposta.
- Sendo
assim, tudo bem.
Depois de
aproximadamente 25 minutos de caminhada chegamos em minha casa. Julian olhava
fixamente em meus olhos e isso me assuntava um pouco, a maneira como ele me
olhava era um pouco estranha, diferente, parecia que ele estava observando cada
detalhe meu, cada pedacinho de mim, não gosto de ser o centro das atenções
então fiquei um pouco sem graça. Depois de 5 minutos em silencio Julian disse:
- Apesar de
querer ficar tenho que ir Amélia, nos vemos daqui a pouco certo?
- Claro que sim...
Ele me deu
um beijo na testa e foi embora. Era quarta feira, e todas as quartas e
sextas minha família participava do encontro anônimo dos Opositores, Julian
era o líder do grupo e atualmente discutíamos uma possibilidade de derrubar o
governo, apesar das quase inexistentes possibilidades ainda tínhamos esperança.
Os Opositores diferente da maioria da população não aceitavam o fato de serem
obrigados a viver como indecentes, sem condições nenhuma, lutávamos e
planejávamos o dia do nosso triunfo, o dia que derrubaríamos a monarquia de
Arthur Filds e finalmente teríamos liberdade.
Entro em
casa e vejo Annelise na janela, logo ela pergunta:
- Você voltou
para casa junto com o Julian?
- Sim Anne,
por que?
- Apenas uma
curiosidade - ela falou friamente - vou para o quarto me arrumar.
- Tudo bem,
depois que você tomar banho eu vou.
Minha mãe
entra na sala sorridente e segurando uma caixa vermelha cintilante:
- Hoje fui no
pátio do governo bem cedinho pegar as roupas que estavam sendo distribuídas.
Fui uma das primeiras a chegar então consegui as melhores peças, peguei um
vestido rosa para a Anneliese e quando vi esse azul aqui lembrei de você, vai
realçar seus olhos ainda mais. Use hoje no encontro Opositor.
- Nossa mãe,
obrigada! - peguei a caixa e abri - Era o vestido mais lindo que já vira em toda
minha vida - Ele é maravilhoso.
- Sim filha,
é lindo!
Depois de
tomar um banho rápido por conta do horário fui para o quarto e me troquei,
coloquei o vestido azul e quando me olhei pelo espelho realmente me senti
maravilhosa. Geralmente não íamos arrumados aos encontros opositores, mas hoje
em especial nosso grupo completa 2 anos de existência e como comemoração Julian
organizou um jantar, será um momento mais descontraído, sem planos rebeldes nem
planejamentos de ataques, algo muito raro de acontecer.
Anneliese
demorou muito para se arrumar, mas quando enfim todos estavam prontos esperamos
dar meia noite, horário que a maioria da população já nem sonhava em passar
pela rua e saímos. Nos encontrávamos em um galpão abandonado na saída da
cidade, era um lugar literalmente esquecido pela sociedade, ninguém nem
lembrava de sua existência.
Quando
chegamos o galpão já estava cheio, estávamos atrasados, e quando meu pai abriu
a porta todos olharam em nossa direção. A principio pensei que o motivo do
silencio era o fato de estarmos atrasados, mais depois percebi que todos
estavam olhando para mim e isso fez meu rosto ficar corado de vergonha. Logo
todos voltaram a conversar e desviram o olhar me fazendo sentir um alivio
imenso.
Logo vi
Julian vindo em minha direção sorridente como sempre:
- Meu Deus, o
que ouve com você?
- Como assim?
- Você está
linda, nem parece a Amélia que eu conheço - Ele falou rindo.
- Muito
engraçado você - falei nervosa.
- É
brincadeira Amélia, você é linda, mais hoje está maravilhosa - Novamente meu
rosto ficou vermelho como um pimentão.
- Obrigada
Ju, é gentileza sua.
- Não, não é
não. Viu como todos te olharam quando você entrou?
- Bobagem,
ninguém me olhou, mas mudando de assunto, o que tem pra comer? Estou faminta -
Falei.
- O governo
essa semana nos deu muito pouco, em minha casa tem praticamente pães e fubá.
- Em minha
casa a situação está parecida, minha mãe me disse que eles deram roupas, mas comida
que é bom, quase nada.
- O que
conseguimos trazer foi um bolo de fubá, pães, e a família do Jorghe conseguiu
trazer peixe e carne.
- Então
estamos esperando o que? vamos comer! - falei sorrindo.
Depois de
uma bela janta sentamos em um banco e começamos a conversar. Anneliese contava
piadas totalmente sem graça e Mike, garoto que cuidava das galinhas com ela,
ria sem parar. Julian não parava de olhar para mim nem se quer um minuto.
Foi uma
noite muito agradável, conversamos, nos divertimos muito, e depois de tudo isso
nossos pais decidiram ir para casa. Anneliese se despediu dos meninos e das suas
melhores amigas Jelly e Paty, deu um
abraço em Julian e disse:
- Amélia, estamos te esperando lá fora.
- Só vou me
despedir do pessoal e já vou.
- Tudo bem -
ela disse.
Cumprimentei
Jelly e Paty, apesar de não ter muita intimidade com elas, me despedi de Mike,
Josh e Caio e depois fui falar com Julian:
- Já está
indo? - ele perguntou.
- Sim, amanhã
temos que acordar cedo para ir trabalhar, você deveria ir também.
- Amélia, eu
sou o líder dos opositores, sou o último a sair daqui pois tenho que fechar o
galpão, mas logo já estou indo também.
- Tudo bem.
Até amanhã!
Ele me
beijou na testa e eu fui embora. Julian tinha esse costume, beijar as pessoas
na testa, eu acho isso fofo, é como se ele dissesse “eu cuido de você”.
A rua estava
deserta e se meu pai não estivesse lá confesso que estaria morrendo de medo.
Assim que chegamos em casa a primeira coisa que fiz foi colocar a camisola e ir
deitar, amanhã o dia será longo.
* * *
Na manhã
seguinte acordei com os raios solares invadindo meu quarto, senti meus olhos
pesados de tanto cansaço, mas não podia me atrasar, caso isso acontecesse o supervisor Pey me castigaria.
Pulei da
cama, coloquei uma calça de malha, uma regata cinza e fui para a cozinha tomar
café. Quando entrei meu pai logo disse:
- Bom dia minha querida!
- Bom dia
pai, como passou a noite?
- Bem, bonequinha!
- Deixe de
conversa e venha tomar seu café, já são sete e meia, você esta atrasada- disse
minha mãe.
Sentei na
mesa e comecei a comer. Enquanto saboreava meu pedaço de pão perguntei:
- Onde está Anneliese?
- Ela saiu
mais cedo para o trabalho, seu supervisor pediu que ela chegasse com meia hora
de antecedência - disse minha mãe.
- Querida, onde
esta o leite? - meu pai interrompeu.
- Não temos
leite - ela disse com o olhar triste.
- Como assim? -
perguntei.
- Essa
semana o governo só nos deu pão e feijão, a cada semana eles diminuem a
quantidade de comida.
Fiquei
preocupada com a possibilidade de passar fome, mas o fato de eu estar atrasada
me pareceu mais importante no momento.
Dei um
abraço em minha mãe, um beijo na careca de meu pai e sai correndo pelas ruas.
Quando
cheguei na plantação Julian já estava lá, como sempre, assim que me viu ele veio
em minha direção com um sorriso e disse:
- Atrasada
como sempre...
- Implicante
como sempre - eu disse entre sorrisos.
- Vamos
trabalhar antes que o Pey venha dar bronca.
A manhã
passou em um piscar de olhos e quando me dei conta já era o horário de almoço.
Pela
primeira vez fomos autorizados a almoçar em casa, mas antes que eu pudesse ir
Julian me chamou e disse:
- Gostaria
que você conhecesse um lugar Amélia, vamos?
- Agora?
- Sim - ele
disse.
- Mas e o
almoço? - perguntei.
- Um dia sem
almoço não vai te matar, voltaremos logo.
A principio
pensei em recusar o convite, mas então comecei a buscar em minhas lembranças a última vez que sai para me divertir, a última vez que sai junto com o meu
melhor amigo, foi quando me dei conta de que não fazíamos isso a muito tempo,
então simplesmente decidi ir.
- Tudo bem
então.
Entramos em
uma mata fechada perto do galpão dos opositores.
- Se
quisermos chegar hoje vamos ter que correr - Julian me disse com um olhar
maligno.
- Jura?
- A não ser que
a menininha esteja com preguiça...
- É claro que
não estou. Vamos correr!
Começamos a
correr pela mata, Julian segurava minha mão e me conduzia entre as folhas
verdes. Sentia uma onda de adrenalina tomando conta do meu corpo, uma sensação
de liberdade, a muito tempo não me divertia assim.
Depois de
uma longa e espetacular corrida chegamos a um lago. Suas águas eram cristalinas
e sua cor era um azul extremamente parecido com o tom dos meus olhos.
- Nossa, que
lugar lindo!
- É aqui que
venho quando quero fugir dos problemas - Ele disse ofegante pela corrida.
- É
maravilhoso!
- A melhor
parte você ainda não sabe. Vamos nadar.
- Como assim
nadar? Eu não trouxe roupas secas para usar depois e...
- Não tem
problema Amélia, hoje o sol está ardendo, antes de chegarmos na plantação elas
já estarão secas.
- Não sei se
é uma boa ideia, Julian...
- A quanto
tempo não se diverte ou melhor, a quanto tempo não nos divertimos juntos?
- Muito tempo...
- Então
Amélia, vamos?
- Tudo bem,
como sempre você me convenceu.
Ele me
ergueu e me colocou em suas costas, saiu correndo e pulou no lago.
- Ahhh,
como a água está fria - eu gritei.
- Deixe de
ser fresca, a água está maravilhosa!
Passamos a
tarde toda nadando, ele jogava água em mim e eu retribuía a brincadeira. Não me
divertia assim a anos.
Toda a
alegria foi embora quando voltamos à realidade.
- Julian já
está escurecendo, não voltamos para a plantação e o supervisor Pey vai nos
castigar!
- Meu Deus
Amélia, perdemos a noção do horário!
- E agora, o
que vamos fazer?
- Correr e
tentar nos explicar para ele.
Corremos
tanto que chegamos lá em menos de 10 minutos. Pey estava nos esperando com uma
expressão de quem estava prestes a matar alguém.
- Posso saber
onde os irresponsáveis passaram a tarde toda?
- Podemos
expli...- Julian foi interrompido no meio de sua tentativa de explicação.
- Acho que
vocês esquecem que são mais insignificantes que porcos, e que se não
trabalharem serei obrigado a denunciá-los ao governo central que não hesitará em cortar o envio de mantimentos e roupas para suas famílias, é isso que vocês
querem, irresponsáveis?
- Não senhor
– eu disse. Uma lágrima escorreu pelo meu rosto.
- Não serei
tão duro com vocês, obviamente haverá uma punição, mais não será severa a esse
ponto. Vocês terão que passar a noite aqui na plantação para colocar em dia o
trabalho que não foi feito.
- Obrigada
pela segunda chance senhor - Julian disse - Pela manhã o trabalho estará pronto.
-Espero que
sim.
Depois que
ele foi embora eu e Julian começamos o serviço.
Cavamos por
aproximadamente duas horas e meus braços já estavam dormentes, por fim
colocamos as sementes e regamos a plantação toda. O trabalho já estava quase
todo pronto, só precisávamos arrumar o depósito de sementes e finalmente
terminaríamos. A sala feita depósito estava uma bagunça, o supervisor Pey fez
isso por pura maldade, seria preciso 2 terremotos para deixar a sela no estado
que se encontra.
A madrugada tornava-se
dia quando terminamos. Eu e Julian sentamos na terra fria e acabamos pegando no
sono.
Quando
acordei já havia amanhecido, Julian ainda dormia como uma criança e quando me
dei conta, estava deitada em seu peito o movimento assuntado que fiz quando
levantei dali fez com que ele acordasse. Nunca tinha visto Julian com cara de
sono, era totalmente engraçado, poderia zombar dele com isso eternamente.
- Bom dia
belo adormecido - eu disse.
- Bom dia
Amélinha - ele disse logo depois de bocejar.
- Já vai
começar a me provocar?
- Claro que
não, eu nunca faço isso!
- Se nunca
pra você quer dizer o tempo todo, eu concordo – soltei uma gargalhada
- Pey já
chegou?
- Ele chega
daqui meia hora.
- Enquanto
esperamos, o que acha de comer um pedaço de pão?
- Onde vamos
encontrar um pão Julian?
- Ontem antes
de vir pro trabalho eu coloquei um em minha bolsa, sempre faço isso. É uma
precaução.
- Muito
esperto você.
Ele abriu a
bolsa e pegou o pedaço de pão, depois de o partir ao meio me deu a metade
maior. Enquanto devorávamos o alimento Julian disse:
- Você fica
linda enquanto come.
- Para de
brincadeira, Julian!
- Não estou!
Seus olhos
encontraram os meus e ficamos desse jeito por um longo tempo. Não sabia ao
certo o que estava acontecendo naquele momento, mas de uma coisa eu tinha certeza,
queria repetir esse dia muitas e muitas vezes.